MARCELO LEITE
Folha de S.Paulo
05/11/201407h54

O ex-senador e ex-vice-presidente dos EUA Albert Gore volta ao Rio com seu otimismo e sua pregação pela necessidade de combater o aquecimento global.

Seu Projeto Realidade Climática arrebanhou 750 pessoas de 55 países para três dias de treinamento para disseminar a mensagem: impedir que a atmosfera se aqueça mais que 2ºC, nível considerado perigoso para a estabilidade do clima.

"Em 79 países o preço da energia de painéis solares está igual ou abaixo do preço da eletricidade pela queima de carvão", diz Gore. "O fato de as soluções estarem disponíveis é o antídoto para a paralisia política."

Uma das fontes do otimismo do americano é a aceitação da necessidade de agir por parte do mundo corporativo: "Os empresários estão à frente dos políticos".


Folha – A sua organização já realizou 25 treinamentos pelo mundo sobre a mudança do clima. Por que no Brasil, agora, e por que em 2014?
Al Gore – O Brasil é um dos países mais importantes do mundo, todo mundo está ciente disso. O Brasil e os Estados Unidos, juntos, estão entre os maiores e mais poderosos países no hemisférios Ocidental, e o Brasil emergiu como um líder na comunidade das nações e todos respeitam as posições do Brasil.
Este é um ano crucial, por causa das negociações que serão concluídas em Paris dentro de um ano, contado do mês que vem. É o momento em que se espera que o mundo se ponha de acordo, finalmente. Já existe um impulso poderoso. Nesta semana mesmo, o lançamento do sumário para formuladores de políticas do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima) mais uma vez enfatiza a incrível urgência dessa crise. O mundo se depara com uma emergência global, e o Brasil pode desempenhar um papel crucial em resolver essa crise, aproveitar essa oportunidade.

Por outro lado, o governo do Brasil se recusou a reconhecer e assinar a Declaração de Nova York sobre Florestas. O sr. ficou decepcionado?
Sim, fiquei. Mas o Brasil também disse que, se outros países agirem, isso terá impacto sobre as escolhas do Brasil no futuro. Agora que a temporada de eleições acabou, no Brasil e no meu país, creio que chegou o tempo de nos mexermos na direção de um enfrentamento sério dessas questões.
Afinal de contas, vamos ouvir não só o que os cientistas estão dizendo, mas o que a natureza está dizendo. O Estado de São Paulo está em meio a uma seca séria. Os cientistas assinalam que sua fonte principal de água doce têm sido os chamados "rios voadores" que correm sobre e através da Amazônia para o Sudeste do Brasil. Quando a Amazônia sofre danos demais, esse processo é interrompido, e o bombeamento dessa água de volta para o céu, pela floresta, se enfraquece e as represas secam.
Na Califórnia, o maior Estado dos EUA, nós também estamos experimentando uma seca histórica. Essa é uma das principais razões para a Califórnia vir agindo para se tornar um líder entre os governos regionais. E eu ouço de cada vez mais cidadãos do Brasil que é hora de se unir à comunidade mundial e defender medidas que vão resolver a crise do clima.

Seu livro e o filme "Uma Verdade Inconveniente" foram lançados em 2006, oito anos atrás. De lá para cá, o sr. sentiu necessidade de mudar as suas falas, talvez soar um pouco menos alarmista? Alguns especialistas dizem que catastrofismo demais pode levar à paralisia, à inação.
Bem que eu gostaria de que as previsões dos cientistas que apresentei naquele filme se tivessem provado incorretas. Mas infelizmente elas acabaram subestimando quão séria a crise está se tornando. Portanto, não, não há nada para eu mudar naquele filme, a não ser talvez para destacar que alguns perigos acabaram se revelando piores.
Mas, quando as pessoas ouvem falar de catástrofes iminentes, isso não teria potencial para paralisar a ação? Minha resposta é: não precisa ser esse o caso. Há muitos poluidores pesados de carbono que têm despendido muito dinheiro e esforços para tentar paralisar o processo político, porque não querem mudança. Acho que essa vulnerabilidade à inação política desaparece quando as soluções ficam disponíveis.
Uma das grandes mudanças desde que o filme estreou em 2006 é que o custo da eletricidade de painéis solares e de geradores eólicos caiu dramaticamente. Em 79 países o preço da energia solar está agora igual ou abaixo do preço da eletricidade pela queima de carvão. O fato de as soluções estarem disponíveis é o antídoto para a paralisia política.

O relatório de síntese do IPCC, por exemplo, fala agora mais de "riscos", em lugar de "perigos", e enfatiza a exequibilidade de um "orçamento de carbono" que nos dê 66% de chance de manter a elevação temperatura abaixo dos 2º C considerados perigosos. O sr. preferiria ouvir palavras mais fortes do IPCC?
Creio que os cientistas são por natureza cautelosos na maneira pela qual apresentam suas conclusões. E respeito isso. O restante de nós aprendeu a interpretar o que estão dizendo. Afinal, quanto aos relatórios anteriores do IPCC, a experiência posterior no mundo foi que as coisas ficaram piores.
O relatório que saiu nesta semana na realidade tem algumas expressões muito dramáticas, alguns alertas muito sombrios: se não entrarmos em ação, veremos consequências muito danosas e irreversíveis, dificuldades para fornecer alimentos adequados, enchentes nas cidades, e isso em linguagem muito mais dura do que usaram no passado.

O sr. então não concorda que o IPCC esteja amenizando sua mensagem.
De novo: a cultura dos cientistas é inerentemente conservadora. Porque eles não são políticos, não estão acostumados a ficar sob os olhos da opinião pública, mas sim a ser extremamente cuidadosos no modo pelo qual afirmam suas conclusões. E isso naturalmente leva, algumas vezes, a subestimar a seriedade das consequências. Não acho que façam isso por temer críticas, mas porque querem se ater ao processo científico.
Para o restante de nós, o dever é tomar o que eles apresentam, em termos muitos alarmantes, mesmo que uma subestimativa, como base para a ação, e não só como mais palavras.

O objetivo é fazer as emissões de carbono pararem de crescer nos próximos cinco ou dez anos e levá-las a zero em 2100. Desde o Protocolo de Kyoto, porém, elas estão aumentando, e isso apesar da redução da atividade econômica após 2008. É algo que se pode alcançar, ou só uma miragem?
É factível. A dramática redução dos preços da energia de fontes alternativas está causando mudanças revolucionárias na economia do mundo. As dez maiores geradoras de eletricidade na Europa que usam carvão perderam a metade de seu valor nos últimos cinco anos. Muitas de suas congêneres no mundo estão sob tremenda pressão financeira, porque o custo da energia renovável está se tornando tão baixo. Essa é uma mudança profunda.
Os investimentos precoces em pesquisa e desenvolvimento para eletricidade solar e eólica agora estão sendo recompensados de forma muito dramática. Num dia da primavera passada, alguns lugares na Alemanha tiveram 75% de toda sua energia de fonte solar e eólica. No meu país, se olharmos para a energia nova, na primeira metade deste ano, quase dois terços vieram de fontes solar e eólica. Estamos vendo essas mudanças, não é apenas mais do mesmo pessimismo que levou a [o fracasso] de Copenhague. O mundo mudou. As alternativas agora não só são competitivas como, em muitos países, são mais baratas do que continuar a queimar combustíveis fósseis sujos.

Vamos falar da China. Esse país anunciou na Cúpula do Clima de Nova York a intenção de começar a diminuir suas emissões "tão cedo quando possível" e tem reduzido a intensidade do uso de carbono por unidade de PIB. O sr. acha que os compromissos assumidos pelos EUA estão à altura dos da China?
Eu gostaria de ver tanto a China quanto os EUA fazendo mais, mas vamos falar dos dois separadamente.
A China acabou de introduzir um imposto sobre o carvão. Gostaria que os EUA fizessem o mesmo. Acabou de criar um teto para emissões e um sistema de comércio de permissões para emitir em cinco cidades e duas províncias e anunciou que será um piloto para um sistema de alcance nacional no ano que vem. Baniu usinas a carvão em várias províncias. Está exigindo de todos os poluidores de carbono que meçam e reportem suas emissões, mês a mês e ano a ano. Investiu muito mais na fabricação de painéis solares e geradores eólicos do que qualquer outro país.
Eles estão dando alguns passos muito positivos, mas é preciso fazer mais. E acho que vão fazer mais, em parte porque a poluição convencional do ar, com a queima de tanto carvão, está agora deixando seu povo doente. A expectativa de vida baixou mais de cinco anos por causa da poluição, e os líderes chineses expõem agora abertamente sua preocupação de que isso possa provocar distúrbios políticos, se eles não mudarem as regras, e causar dano à dominância do Partido Comunista. Eis aí algo que captura a atenção deles.
Nos EUA, o presidente Barack Obama tem entrado em ação sem o Congresso, usando uma lei que a Corte Suprema disse ser adequada, e está seguindo em frente para reduzir emissões de CO2. Ele já reduziu dramaticamente as emissões dos automóveis. Mas ambos, China e EUA, deveriam fazer mais, na minha opinião.

Negociadores brasileiros se queixam da barreira erguida no Congresso americano contra um acordo vinculante, com obrigações legais, em 2015. Muitos acreditam que é um sinal seguro de nenhum acordo razoável será obtido em Paris. O que o sr. lhes diria para renovar suas esperanças?
Antes de mais nada, a opinião pública nos Estados Unidos está mudando dramaticamente. Em segundo lugar, o governo Obama obteve um parecer jurídico dizendo que ele pode modificar um tratado que tenha sido adotado e ratificado e atualizar as provisões desse tratado sem ter de voltar ao Senado para uma outra ratificação.

O sr. se refere à Convenção do Clima de 1992, já que o Protocolo de Kyoto, de 1997, não foi ratificado pelos EUA, correto?
Sim. E ela diz que os Estados Unidos estão obrigados a agir para evitar níveis perigosos de gases do efeito estufa. Agora os cientistas dizem que qualquer coisa que eleve a temperatura global acima de 2º C é um nível perigoso. Ele tem a autoridade de que necessita, sem nova ratificação.

Os relatórios recentes "Nova Economia do Clima" e "Negócio Arriscado" parecem sinalizar uma atitude muito mais receptiva do mundo corporativo para a questão do clima, ou pelo menos de alguns de seus líderes mais destacados. O sr. diria que há impulso suficiente para uma virada, em que líderes empresariais passarão a pressionar governos para agir?
Sim. Creio que os empresários estão à frente dos políticos. Qualquer empresa que lide diretamente com consumidores, oferecendo produtos ou serviços, está agora sob pressão crescente para se assegurar de que seus clientes não mudem para competidores que tenham políticas ambientais melhores. E esses negócios fizeram os investimentos para se tornarem verdes estão agora pressionando os governos para que façam mais. Vejo isso todos os dias, e está fazendo uma diferença. E eles querem que essas mudanças sejam incluídas na lei para ter certeza de que todos terão de fazer o mesmo.

Para concluir: o sr. está otimista quanto a um acordo em Paris?
Estou otimista. Havia um poeta americano no século 20, Wallace Stevens, que escreveu o seguinte: "depois do último não, vem o sim, e o futuro do mundo depende desse sim". Tivemos muitos períodos na história do homem em que militantes pela abolição da escravatura, pelo direito das mulheres a votar como os homens, contra o apartheid, pelos direitos civis em meu próprio país –uma longa lista de exemplos... Em cada um desses casos, houve momentos em que as pessoas ficaram desencorajadas, e parecia que nunca iria acontecer. Mas, porque era a coisa certa, aconteceu de fato. É nessa história que a luta pelo equilíbrio do clima tem lugar. Sempre que nós, seres humanos, nos depararmos com uma escolha clara entre o que é certo e o que é errado, com o tempo acabaremos fazendo a coisa certa. Estamos agora nesse ponto, e em Paris daremos o próximo passo.